Tinha eu 3 anos quando se deu em Portugal o 25 de Abril (1974). Um ano e meio depois (20 novembro de 1975) morria o Ditador Franco em Espanha. Assim, a minha infância e adolescência coincidiram com o fim das ditaduras e a consolidação das “democracias” na Península Ibérica. Não sabia então que acabaria a viver e trabalhar em Portugal e assistir desde este País a duas crises globais, uma financeira em 2008 e esta outra de natureza sanitária, mas com implicações económicas.
Tampouco
podia adivinhar como os acontecimentos políticos da minha infância,
já lá vão 40 anos, seriam tão influentes na hora de explicar as
respostas diferente às crises dadas pelas sociedades Espanhola
e Portuguesa, e os resultados também divergentes.
Desde Espanha
olha-se para Portugal com incredulidade por um país menor, mais
pobre e com pior Sistema de Saúde obter melhores resultados no
combate à Pandemia. Não vou entrar a valorar se os preconceitos
espanhóis se correspondem com a verdade. O facto de os espanhóis
recorrerem à expressão “Milagre Português” para explicar
sucessos comparativos de Portugal revela as crenças enraizadas
dos espanhóis em
relação a Portugal e no
geral a
visão que têm do país ali ao lado deles. Resumidamente:
Sobranceria Espanhola:
La cuarta economía de la Unión Europea, España, reacciona ante una emergencia sanitaria con peores medios, menos recursos públicos, con menos efectividad en la gestión, que su país vecino, que ocupa el puesto número 12 de ese ‘ranking’ de economías europeas, y que ha atravesado un gravísimo periodo de precariedad tras la intervención europea por la crisis financiera de 2008. ¿Cómo es posible?
(https://blogs.elconfidencial.com/espana/matacan/2020-04-23/bochorno-policia-espanol-frontera-ayamonte_2562051/)
O milagre é sempre a explicação à falta de explicação. Maiores (tamanho importa em Espanha), mais ricos, e com melhor Saúde os números de mortes devido a Covid em Espanha são à data entre 25 a 30 vezes maiores do que os de Portugal (21000 vs 700), quando a população espanhola é só 4 vezes e meia maior. Isto é, com os números de Portugal as mortes em Espanha deviam ficar em redor às 3000.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, reivindica que o milagre de que se fala lá fora é na realidade esforço, solidariedade e sacrifício.
(https://www.dnoticias.pt/pais/marcelo-elogia-governo-e-diz-que-estrangeiros-falam-em-milagre-portugues-XF6117198)
Mas não queria falar aqui de Covid-19. Amanhã (escrevo a dia 24 de abril) é o 46º aniversário do 25 de abril, e não deixo de pensar que os acontecimentos políticos da minha infância e adolescência têm influência direta, 46 anos depois, na resposta das duas sociedades ibéricas aos desafios recentes. E podem também explicar objectivamente porque o país com mais recursos tem 7 vezes mais mortos à data do que o país “menor”.
Então qual é a explicação? Não é preciso dizer Milagre. Se Portugal é menor, mais pobre e com pior Sistema de Saúde então a outra explicação melhor que Milagre é que o seu Sistema Político, a sua Sociedade e o seu Sistema de Saúde estão melhor desenhados para fazer face aos desafios colocados por crises desta dimensão.
No dia a dia corrente, quando a última crise foi ultrapassada e esquecida e a próxima ainda fica longe, a dimensão de Espanha (quarta economia da UE) permite-lhe agir como País com aparente eficácia e eficiência comparativamente a Países como Portugal (aka “O Milagre”) ou a Grécia (aka “O Paradoxo”).
Então o quê acontecia em Portugal e Espanha enquanto eu assistia a aulas de EGB (ensino básico) e jogava à bola no pátio da escola e na rua até o sol se pôr?
Em 1974 um grupo de militares portugueses, descontentes com o regime, decidiram sublevar-se e acabar com decénios de ditadura. Os populares, ao contrário do que aconteceria na Espanha com a tentativa de Golpe de Estado de 1981, não ficaram em casa e saíram em massa às ruas para apoiar a mudança de Regime. O que se seguiu foi um ano e meio de processo revolucionário em que destaca o “Verão Quente” de 1975 onde conforme se pode ler na Wikipedia:
A par das ocupações de terras [6] e casas abandonadas, da Reforma Agrária[7][8], de melhorias importantes como o estabelecimento do salário mínimo, o processo levaria ao desmantelamento de grupos económicos ligados ao regime deposto, entre os quais a CUF, à nacionalização de empresas consideradas de interesse público, na banca, seguros, transportes, comunicações, siderurgia, cimento, indústrias químicas, celulose. Fizeram-se «saneamentos» no aparelho do Estado e nos meios de comunicação, com vista a afastar elementos indesejáveis do velho regime, substituindo-os por elementos afectos às forças políticas dominantes.
As juras de bandeira dos militares forneciam testemunhos inesperados para um espanhol, como o este juramento de bandeira no qual os soldados recitam o seguinte: “Nós, soldados, juramos ser fiéis à patria e lutar pela sua Liberdade e independência. juramos estar sempre ao lado do povo, ao serviço da classe operária, dos camponeses, e do povo trabalhador.” (https://www.youtube.com/watch?v=kWOvIh_dL-I)
Tratava-se portanto do desmantelamento do Regime deposto e da criação dum novo contrato social. Era tal a força revolucionária dos processos em curso, de que o ano de 1975 foi palco em Portugal, que boa parte dos esforços da Comunidade Internacional empregaram-se em atenuar e desativar no possível a força da mesma, e com sucesso. A certa altura os EUA admitiram dar por perdido o país para o Bloco Soviético.
Para isso convocaram-se eleições para uma Assembleia Constituinte, encarregue pela elaboração duma nova Constituição. As eleições à Assembleia Constituinte aconteceram a 25 de Abril de 1975. Os trabalhos de discussão duraram até 31 de março de 1976 e a Proposta de Constituição votada pela Assembleia foi promulgada dois dias depois a 2 de abril, data em que a Assembleia Constituinte se dissolveu tendo dado por cumprido e finalizado o seu mandato popular.
Surgiu assim deste processo revolucionário e condicionado pelo seu espírito de mudança o Sistema Político vigente em Portugal.
Entretanto os acontecimentos em Portugal, tão perto de Espanha, não podiam deixar de ser observados pela Ditadura Espanhola com preocupação. Em novembro de 1975 morria o Ditador, Francisco Franco Bahamonde, de doença prolongada. O “Exemplo” Português não aconselhavam deixar o processo político em mãos do povo e por isso o que se seguiu foi muito diferente ao modelo português.
Apenas dois dias após a morte de Franco foi proclamado Rei de Espanha Don Juan Carlos I, como já tinha sido previsto e disposto pelo próprio ditador. Para isso o Rei de Espanha jurou no Congresso dos Deputados fidelidade aos Princípios do “Movimento Nacional” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_Nacional) , o Regime Totalitário saído dum golpe militar a que se seguiu uma cruel Guerra civil e repressão e que governou o País durante 40 anos. Não se conhece do Rei Juan Carlos I que tivesse jurado fidelidade nenhuma a mais nenhum outro regime político. Juan Carlos foi Chefe de Estado em Espanha durante toda a Democracia até a sua abdicação (19 de junho de 1914) sem nunca ter jurado defender a mesma. Ninguém achou necessário solicitar-lhe essa gentileza.
O processo para a “obtenção” duma Constituição que substituísse o Regime Autoritário produziu-se coma anuência de países poderosos. Henry Kissinger nos EUA, Willy Brandt e Helmut Schmidt na Alemanha, Harold Wilson no UK e Valéry Giscard d’Estaing na França, horrorizados talvez pela profundeza das reformas promovidas pelo Processo Revolucionário Em Curso em Portugal (PREC), apoiaram o plano que o próprio regime sainte desenhou para si próprio evitando “convulsões” desnecessárias e sancionando desde início a nomeação de Juan Carlos I como Chefe de Estado.
Consistiu este processo em que o regime fizesse aprovar uma “Lei para a reforma política”, outubro 1976, desenhada desde dentro do Regime e que incluía já questões tão fundamentais para a democracia como a Lei Eleitoral, que foi aprovada por Real Decreto (Lei emanada diretamente do executivo) em 1977 e que, sem surpresa, favorece o voto conservador.
Assim no caminho da Ditadura para a Democracia em Espanha a Lei Eleitoral é anterior à Constituição, tal e como a Chefia de Estado (O Rei).
Só depois de garantidas, em forma e extensão, as reformas políticas promovidas pelo próprio Regime, incluindo já a Lei Eleitoral, é que foram convocadas eleições ao Congresso dos Deputados com eleição de 350 representantes https://es.wikipedia.org/wiki/Elecciones_generales_de_Espa%C3%B1a_de_1977. A maioria ficou em mãos do partido Conservador saído do Regime, UCD, muito graças à Lei Eleitoral por eles próprios desenhada.
Este Congresso longe de se constituir ele todo num foro de debate Constituinte procedeu à nomeação de 7 proponentes que elaboraram em privado um esboço de constituição. 5 proponentes conservadores e 2 proponentes de esquerda. São os chamados “Padres de La Constitución” (Pais da Constituição). Vários deles confessaram que os esboços de artigos constitucionais que elaboravam em privado numa sala do Congresso eram levados de imediato a uma sala contígua onde esperavam generais e outras altas patentes franquistas de arma em punho (Em Espanha não houve depurações, mas continuismo no Exército, na Judicatura, nas Polícias e na Alta Administração). Estes generais por vezes enviavam para trás aquilo de que não gostavam “sugerindo” as alterações a fazer.
Por este processo tutelado foi elaborada a Constituição Espanhola, sob o olhar vigilante dos altos funcionários do Regime Sainte e do Exército, e incluindo já a Forma Hereditária da Chefia do Estado na pessoa de Juan Carlos I. E esta é a origem do Sistema Político Espanhol.
O Povo, esse que em Portugal na mesma época era “quem mais ordena”, só foi chamado em Espanha para participar do processo de reforma política num referendo no qual se lhes fazia uma só pergunta: Aprova o Projeto de Constituição?
Mais de 40 anos depois os Espanhóis perguntam-se, por que Portugal tem sucesso e nós não? Os números, as magnitudes, até as circunstâncias de partida pareceriam favorecer a Espanha frente a Portugal.
Para perceber melhor o “Milagre” Português e através dele compreender melhor as possíveis causas da ineficácia espanhola, recorrerei a outro país que nos anos 70 teve também o seu processo de transição de Ditadura para Democracia:
O “Paradoxo” Grego.
Disse a Eurodeputada Anna-Michelle Asimakapoulou do partido do governo Nova Democracia que na Grécia foram tomadas medidas de restrição muito cedo, a população respondeu disciplinadamente. As pessoas acreditaram no seu governo e acreditaram nos expertos de Saúde.
Por outro lado existe na Grécia a consciência da debilidade do seu Sistema de Saúde, por isso agiu-se cedo para evitar o congestionamento do mesmo.
E por último a oposição tem um papel exemplar no apoio às medidas do Governo em tempos de exceção.
Podem ver o artigo do qual se obtém esta informação aqui:
(https://www.elconfidencial.com/mundo/europa/2020-04-22/misterio-grecia-coronavirus_2558703/)
Se compararmos esta análise do que acontece na Grécia com a Espanha podemos observar o reverso perfeito:
Na Espanha não havia consciência das debilidades do seu Sistema de Saúde, não se tomaram medidas restritivas a tempo e quando foram tomadas a população não respondeu com disciplina, talvez por não acreditar no Governo ou nos expertos da área da Saúde. Além disso a oposição política promove a confusão e a desorientação do povo.
Milagre Português, Paradoxo Grego, Caos Espanhol?
Estas explicações simplistas podem ser necessárias para cativar a atenção nos meios de comunicação e evitar as análises das causas por trás das diferentes respostas e resultados. Assim os meios de comunicação fornecem Chavões Supersticiosos às pessoas em vez de explicações rigorosas ao tempo que impossibilitam toda e qualquer crítica interna.
Como se pode criticar a má ação governativa na Espanha se atribuímos a boa ação governativa noutros países a um “Milagre” ou a um “Paradoxo” ?
No caso espanhol o Sistema político vigente nasceu tutelado. Ao povo foi pedido apenas que respondesse “sim” ou “não” ao modelo democrático já decidido pelos poderes do Estado e desde então que esses mesmos Poderes se têm recusado, ferozmente, a reformar a Constituição naqueles artigos que preservam muita da ideologia do Regime Autoritário que a antecedeu.
Daí
resulta uma cultura política altamente paternalista onde
a ação legítima cabe ao governo e aos partidos quase
exclusivamente, sob a vigilância do Rei, do Tribunal Supremo e do
Exército, e onde se veem com hostilidade outras formas
de ação política que
são reprimidas por esses poderes.
Em
momentos de crise como os que vivemos hoje este tipo
de Sistema
Político tem a tendência para centralizar a resposta
à crise cortando
ainda mais os já enfraquecidos elos de comunicação entre o povo e
os seus governantes provocando respostas inadequadas
à Pandemia por falta de “informação”, “adequação”
e “adesão”.
Diz-se
por exemplo que
a reação em Portugal foi rápida, mas esquece-se
que o
Governo foi decidindo medidas restritivas só porque o povo
ele próprio ia
fechando serviços
sem esperar pela ordem governativa. As escolas começaram a fechar,
as empresas começaram a
enviar os funcionários para as suas casas, os comércios começaram a
impor restrições aos ajuntamentos excessivos.
A resposta do governo Português não foi punitiva para estas escolas, empresas e comércios e qualquer outro sector da atividade económica ou social que, sem esperar por ordens, tivesse tomado medidas não patrocinadas pelo Governo. Preferiu-se reconduzir as decisões já tomadas pelo povo e dar-lhes forma Governativa e a partir desse momento passar a liderar a resposta à Pandemia.
O povo foi “ordenando” e o Governo foi fazendo com suficiente competência. Isto explica muito da adesão do povo às instruções governativas e a sincronia existente entre o Primeiro Ministro, O Presidente da República (que é eleito por sufrágio) e a Oposição.
O “Milagre” Português começou um 25 de Abril de 1974, faz amanhã 46 anos.